Muita Luz Para a Sua Vida!!!

Muita Luz Para a Sua Vida!!!
Luz*Paz*Sucesso

quarta-feira, 5 de maio de 2010



Luiz Mendes
Como foi sua entrada no sistema, qual foi a sensação, e como foi sua saída?
A história começa com um moleque criado no juizado de menores, eu saí da minha casa com onze anos de idade e estou aqui, agora por minha conta. Meu pai era alcoólatra, minha mãe uma pessoa dominada por ele e eu não tive condições de conviver com isso. Meu pai era alcoólatra violento e me batia muito, e já com onze anos eu tinha vontade de ser livre, as luzes da cidade me fascinavam muito, então eu fugi e fiquei pelas ruas, fui me criando como estes moleques que tem na Praça da Sé hoje.

A gente ficava na Praça da República, na época, isso há quarenta anos atrás, agente tinha doze, treze anos de idade, hoje a molecada tem sete, oito anos. Nós éramos umas dezenas, hoje são milhares, quer dizer, passados os quarenta anos não mudou nada, piorou né. Aí eu aprendi a roubar. No juizado de menores, a polícia nos pegava e levava para o juizado, a gente conhecia outros moleques que já sabiam como sobreviver nas calçadas, como sobreviver sendo filhos da cidade de São Paulo. Então comecei a roubar com eles, aprendi a abrir bolsas, roubar carteira, abrir casas quando as pessoas saiam para viajar, invadia naquele tempo, e era um tempo de amarrar cachorro com lingüiça, então era fácil, tudo muito fácil, e assim a gente foi crescendo, foi se desenvolvendo, a gente ficava pouco tempo na rua pois a polícia pegava, prendia e tal. A gente ficava um tempo no juizado e voltava pra rua, foi um ciclo e com dezesseis anos eu fui preso, só saí com dezoito anos e meio, e aí eu já sai com uma cultura criminal estabelecida.
É a cultura do abandonado, a molecada fica toda abandonada no juizado, é o sabor das suas próprias conseqüências e abandonado a suas próprias inconseqüências, e aí vai criando uma estrutura criminal que é filtrada, eu saí do juizado totalmente impregnado, eu já não era mais uma pessoa comum, eu era eu e mais aquela cultura aprendida ali, e esta cultura dizia que eu devia ser bandido, dizia que eu devia ser ladrão mesmo, eu devia barbarizar porque eu tinha sofrido muito, e no nosso tempo não era FEBEM era RPM (Recolhimento Provisório de Menores) e nestes tempos eram os PMs que tomavam conta da gente, eles batiam muito na gente, eles dominavam a gente na base da borrachada, aí criou uma estrutura de revolta em mim e em todos nós. Saímos com a vontade de fazer alguém pagar por tudo aquilo, por todo aquele sofrimento, por toda aquela dor, por toda aquela desgraça, aí eu já saí um bandido mesmo, já saí pegando nas armas e fomos assaltar, não demorou muito, num tiroteio com a polícia eu matei um policial, eu fui preso com dezenove anos. Fiquei preso até os meus cinqüenta e um anos, fiquei trinta e um anos e dez meses, fugi duas vezes, mas das duas vezes uma, eu fiquei cinqüenta e dois dias e a outra, fiquei quarenta e nove livre e nem senti muito a vida, agora já fazem seis meses que eu ganhei minha liberdade. Eu tenho dois crimes na cadeia, e em um destes crimes eu fui parar numa cela forte da Penitenciária do Estado, e na cela forte a gente não podia conversar por ser extremamente difícil, mas tínhamos um jeito, para conversar a gente tirava a água da privada, sabe essa água que faz o mijo da privada? Então a gente jogava ela para dentro e através do encanamento a gente conversava com o cara do xadrez em frente, era nosso método de conversa, porque se o guarda pegasse a gente conversando pela espia, que a gente chamava de ventana da galeria, se o guarda escutasse ele já dava mais trinta dias de castigo, então a gente tinha que conversar de madrugada quando o guarda dormia. Aí eu conheci um cara que morava na cela da frente, que se chamava Henrique Moreno, ele começou a falar de livros para mim, ele já estava preso há cinco anos e era um cara que já tinha uma estrutura, ele já gostava de livros, ele era um poeta e tal, ele começou a contar para mim as histórias de uns livros que ele já tinha lido, eu não gostava muito porque era muito chato, mas como eu só podia escutar ele, então dei atenção, e dando atenção, aquilo aos poucos foi me convencendo, era uma história interessante e tal, ele começou, por exemplo, me contou a história dos “Mil Livros Miseráveis” de Victor Hugo. Ele me contou de uma tal maneira, e depois eu fui ler e não gostei tanto, gostei mais do que ele contou, então contava filmes, eu fui pegando vontades também de saber essas coisas.
Quando saí do castigo, ele já tinha saído antes, ele mandou duas pilhas de livros que tinha mais ou menos dez exemplares cada, ele mandou um rascunho de uma carta para minha mãe, eu não sabia nem escrever direito, então eu copiei os rascunhos dele, as dez primeiras cartas que eu escrevi para minha mãe, e fazia quatro anos que minha mãe não sabia e nem ouvia falar de mim, foi ele quem fez o rascunho e aos poucos, por vergonha pessoal, comecei a querer escrever. Comecei a escrever assim, comecei a ler porque eu fiquei mais seis meses no RO (Regime de Observação) na mão da psiquiatria e nesse tempo eu não saía da cela, então eu não tinha alternativa senão ler a biblioteca da penitenciária. Tinha mais ou menos vinte mil livros, era uma biblioteca muito boa, eu pegava os livros em meu nome ou no nome dos demais companheiros que moravam em torno e era uma semana para devolver o livro. Fui pegando gosto e amor pelos livros, aos poucos fui desenvolvendo uma capacidades. Depois quando eu tinha mais ou menos vinte e três anos eu conheci uma mulher, havia um lugar que se chamava “Tico dos Mensivistas Amigos”, que foi criado por um amigo meu chamado Deni Lopes, eles se propunham a trocar correspondências com pessoas presas e doentes em hospitais, então comecei a trocar idéias com ele por carta e ele me apresentou uma pessoa, uma mulher que estava acabando de se formar em letras, era professora, uma mulher casada, com filhos e tudo, e ela acabou gostando bastante de mim e começou a me orientar sobre determinadas situações, e principalmente, me confrontar em valores que eu tinha aprendido no juizado e em prisão. Ela começou a me provar que estes valores não tinham substância e que, se analisados e colocados frente à parede, não se sustentam. Foi me mostrando e me colocando contra a parede e eu comecei a ficar sem chão, tudo aquilo que eu aprendera como verdadeiro mostrou ser falso, aí eu tinha que criar uma nova substância.
Nós não vivemos sem substância e ela foi me mostrando algumas outras coisas. Eu não sabia que existia gente boa, realmente eu só conhecia gente que quis me explorar, que quis me usar e que quis subir em cima de mim, a única pessoa boa que eu conhecia era minha mãe e mais ninguém, então ela começou a me mostrar que as pessoas podem ser boas e me mostrou muitas outras coisas. Eu me apaixonei por essa mulher, só que, como ela era uma mulher casada, uma mulher digna, e naquele tempo não havia visita íntima na prisão, eram quarenta minutos de visita, a mulher senta de um lado, o homem do outro, muita dificuldade, para dar um beijinho era roubado e ameaçado de pegar trinta dias de castigo, muitos parceiros meus pegaram. Então não tinha jeito, mas ela me encostou na parede e me obrigou a dizer o que eu estava sentindo, o que estava havendo comigo, ela falou: “para eu corresponder à você não sei se posso porque sou casada, mas eu gosto muito de você, o que você sente por mim eu também sinto por você, só que eu não posso, mas o que eu posso fazer se você não pode deixar de gostar de mim, eu não posso te abandonar, por causa disso, então a gente continua, mas você sabendo que as condições são estas”. Foi assim durante mais ou menos cinco anos, nós tivemos esta relação, a relação com o marido dela estava defasada porque o negócio do cara era beber cerveja e escutar futebol e ela era uma pessoa hiperligada ao mundo da cultura e dos estudos, mas ela segurou. Depois teve um momento que ela ficou grávida do marido e teve que correr atrás de ter o filho e tentar uma estrutura com o marido para poder criar aquela criança.
Eles já tinham uma e eu estava condenado a mais de cem anos de prisão, eu não sairia tão cedo mesmo, então não tinha futuro nem esperança. Nós acabamos sentindo que tínhamos que nos separar, eu tinha que seguir minha vida e ela tinha que seguir a dela, e aí foi assim, ela foi embora e eu fiquei, continuei lutando, estudando, até que, em 1979 saiu a Lei de número 1.819, era uma Lei que dizia que era permitido ao preso o curso do exame superior, só que não estava regulamentada ainda, tinha apenas saído. Como foi publicado, eu vi aquele negócio, olhei e decidi que ia fazer uma faculdade, só que eu não tinha nem o primeiro grau, então me perguntei o que me adiantava ter o primeiro grau e o superior se eu tinha mais de cem anos de cadeia, pra que eu ia estudar? Eu lia muito nessa época, mas essas coisas curriculares não me interessavam, eu gostava de psicologia, eu gostava de sociologia, mas estas coisas de profundidade não me interessavam, mas mesmo assim, eu me voltei para isso e decidi que iria fazer, e então eliminei o primeiro grau, eliminei o segundo grau, estudei para o vestibular sozinho, ninguém me ajudou. Escrevi uma carta para PUC e a reitora me concedeu uma bolsa de estudos, claro que condicionada a eu passar no vestibular e tudo, ter o certificado do segundo grau. Eu tinha conhecido uma amiga que tinha um relacionamento dentro da igreja e foi assim que conseguimos com que a PUC viesse fazer o exame para mim dentro da penitenciária. Fui o primeiro preso do Estado de São Paulo a fazer o vestibular dentro da penitenciária. Fizemos o exame, eles permitiram: o juiz permitiu, o diretor permitiu, até a reitora da PUC permitiu, mas eles acharam que era uma coisa assim, como é que eu poderia disputar com a “japonesada”, porque era 450 vagas para 5000 candidatos, como é que eu iria disputar, um preso que estudou sozinho, como é que esse cara ia aprender Física, Química e Biologia sem ninguém ensinar para ele? Então foi assim, eu fiz o exame, saiu matéria na Globo.
Eles fizeram uma entrevista comigo na Globo e em outra emissora, foi um escândalo na época. Quando passou um tempo o guarda falou para mim: “faz sua barba e veste uma roupa que tem uma repórter aí querendo falar com você”, então quando eu saí do terceiro pavilhão os holofotes já me pegaram, a repórter da Globo pôs o microfone na minha frente e disse assim: “eu vim falar com você aqui porque eu vi o resultado do exame, você passou, você está sabendo? E você é um dos primeiros colocados, queríamos fazer uma entrevista com você e saber como você está se sentindo”.
E eu fiz a entrevista, viram outras televisões e jornais, foi uma festa. Quando os presos viram a reportagem, parecia jogo do corinthians, todo mundo apoiou, e então eu consegui, mas, só que, no ano de 1983 o juiz não permitiu que eu fosse freqüentar a faculdade, minha pena já estava em cento e trinta e dois anos, não dava. Nesse ano eu batalhei e consegui derrubar a minha pena para quarenta e nove anos. Em 1984 entrou o Francisco Montoro, como governador, e o José Carlos Dias, como Secretário da Justiça, e através de Dom Paulo Evaristo Arms, que era o cardeal de São Paulo, cheguei até o Secretário da Justiça, e do Secretário, chegamos até o juiz, e desta vez fui autorizado. Em 1984 eu saí da penitenciária para fazer a faculdade, eu saía e Freqüentava a PUC de manhã, fazia direito. Foi a coisa mais significativa que eu acho que já vivi até hoje, porque agente não sabe o que vai encontrar, espera até rejeição e preconceito. Não foi, absolutamente ao contrário, eu fui superbem recebido na universidade e a universidade deu todo apoio. Eu tinha um bom relacionamento, aos poucos eu consegui montar um relacionamento no DCE, Diretoria Central dos Estudantes, no CA, Centro Acadêmico, até no jornal Poranduras.
Eu escrevia no jornal, e quando eu fui embora eles estavam querendo me colocar numa chapa da direção do CA, na eleição que iria haver lá, então eu me dei muito bem, eu era o representante da minha classe de direito frente à Reitoria, comecei a expandir bastante, só que as coisas tomaram um ritmo independente de mim. Eu tinha trinta e dois anos de idade e tinha passado doze anos preso e é o seguinte, naquele tempo não havia visita íntima, então tinha uma contenção sexual obrigatória, eu vinha doze anos nessa, então eu saio, os caras me jogam assim no período matutino da PUC, onde só tem menininhas, é como jogar um lobo no meio dos cordeiros. Eu pensava assim quando cheguei, mas depois, comecei a perceber que o lobo não era bem eu, e então eram muitas situações e eu era dominado pelas mulheres.
Tinha muita gente, o pessoal que estudava na minha classe do curso específico, eram sessenta alunos, cinqüenta mulheres e dez homens, era uma situação que eu não tinha muito controle sobre aquilo, eu era noivo, ia casar e tudo, mas fui me enroscando, me envolvendo em um monte de situações. De repente, não pude mais controlar. Eu tinha uma idéia na prisão, por exemplo, esta coisa de marca, que no meu tempo era Fiorucci, Machines, grife, para mim, era uma tremenda besteira. Como é que os caras vão botar na minha cabeça que eu tenho que gastar mais dinheiro para ter aquela grife? Eu vou comprar o que eu gosto mais, o que é mais barato, eu achava um absurdo, e de repente, eu estava querendo usar aquelas marcas e tudo. Não é que mudou, mas fui dominado, queria usar mais não tinha dinheiro nem para pagar um café para uma menininha, quem pagava minha condução era minha mãe, eu não tinha dinheiro nenhum, então era uma dificuldade muito grande. Eu me empolguei de tal modo que teve uma hora, que fui obrigado a fugir da penitenciária, saí e não voltei.
Eu saía às três horas da manhã e voltava às dezoito horas da tarde, aí fui embora e fiquei quarenta e seis dias na rua. A polícia me catou num tiroteio, me deu três tiros e quase me matou. Fui para o fechado e pro castigo, depois fui parar nas penitenciárias lá no fim do mundo, aí começou aquela briga e eu não tive mais chance. Então quando fui capturado, na medida em que agente vai aprendendo as coisas, você vai aprendendo a ser autocrítico, a se observar, e principalmente, em relação às pessoas. De repente eu me vi, eu tinha lutado um montão de anos para chegar até aquele momento de estar numa faculdade que era o meu sonho, e de repente eu joguei fora por quê? Então eu percebi que a minha vida girava em torno de conseqüências, que eu não observava as ações, mas não percebia que uma conseqüência levava a outra, e de repente, eu estava numa roda viva, eu não tinha mais controle sobre a minha vida. Procurei estudar isso, daí comecei a querer saber por que as coisas eram assim, o porquê eu não podia controlar minha vida, e por que tinha que ser sempre assim, esse sofrimento todo, toda aquela miséria e toda aquela desgraça, e não era só eu, minha mãe sofria comigo, eu era filho único, era eu e ela e só, nós não tínhamos ninguém. Então comecei a refletir, porque eu aprendi a estudar automaticamente e o meu método era esse, quando eu aprendo alguma coisa, e eu estudava para reter a coisa na minha mente, eu tinha que escrever. Por exemplo, uma idéia sobre o livro, eu escrevia no papel à minha maneira, e então já estava registrado na minha cabeça, porque à medida que eu escrevia, eu fazia um discurso interno e já registrava, e esse era um método meu.
Foi o que eu fiz para entender, eu fui escrever a minha vida, comecei a questionar com a minha mãe, porque muita coisa da minha vida infantil eu não lembrava e minha mãe foi lembrando as coisas até quando eu nasci, mais ou menos por acaso. O meu pai era um homem casado e conheceu minha mãe, minha mãe era uma babona que foi criada em colégio interno, até que um dia, os irmãos da minha mãe descobriram que meu pai era casado, ela também não sabia, mas aí o cara a convenceu, ela jogou a mala pela janela falou que ia na padaria e não voltou mais, tá até hoje, bom, hoje não está mais porque ela é falecida. Então ela foi morar num bar em Ferraz de Vasconcelos e ficou grávida, mas a mãe dela descobriu onde ela estava e mandou dinheiro para ela tirar a criança, ela foi e tirou. Depois, ficou grávida de novo, a mãe deu dinheiro, ela foi e tirou de novo. Ficou grávida pela terceira vez, então ela achou o seguinte: que o dinheiro que a mãe deu para ela tirar, ela podia comprar um armarinho de cozinha, já que o marido dela estava trabalhando e podia depois, com o salário dele, tirar. Então com o dinheiro de tirar a criança ela comprou o armário e o marido ficou desempregado, e ela ficou sem dinheiro para tirar, aí eu nasci. Tive determinação até para nascer.
Então comecei a ver essa história todinha com minha mãe e comecei a registrar, quando eu acabei e fui ler, percebi que não tinha adiantado muito. Não adiantou nada eu só saber a história, mas eu aprendi uma coisa, aprendi uma questão de fé, aprendi uma fé que era constituída de dentro da minha experiência pessoal, do que eu tinha vivido, então eu tinha uma fé viva dentro de mim, por exemplo, eu vivi tanto e quantas situações limites de estar para morrer, ou de estar em situações terríveis, sem saída e sem escapatória, e de repente surge um jeito de escapar, de repente surge alguém, surge uma mulher, surge um amigo que me coloca para frente e me leva para outras situações e eu escapo. Escapei milhares de vezes, milhões de situações difíceis, extremamente difíceis, então eu comecei a pensar que estas coisas eram matematicamente impossíveis de acontecer por acaso, seriam muitos acasos, então acreditei que existia algo que além de mim me protegia, gostava de mim e me amparava além do humano, alguma coisa extra que podia até ser eu em nível anímico, mas eu acreditei que fosse uma força, que eu não posso disser que seja Deus, que seja isso ou que seja aquilo, porque a minha concepção de Deus é uma coisa inteiramente que extrapola qualquer tipo de preocupação de Deus comigo, e se você analisar em nível macrocosmo, vai observar que à medida que o homem aumenta a sua capacidade de devastar o universo, ele vai descobrir cada vez mais novas galáxias, o que é uma galáxia? Nossa galáxia tem mais de cem milhões de sistemas solares como o nosso, centena de milhares, cada galáxia tem um tanto desse daí, e os homens estão descobrindo novas galáxias, e quem criou isso daí, imagina, agora você vai até o mínimo, o átomo, ele é a última partícula da matéria, agora, será que essa pessoa vai se ligar no que eu estou fazendo com meus órgãos sexuais, com meus valores, com meus problemas? Como pode um ser que criou o mínimo e o máximo estar preocupado com um grão de areia que eu sou ou um nada que eu sou? Então minha concepção de Deus é uma outra coisa, extrapola esse, e que não é um Deus antropomórfico pessoal é uma coisa diferente, mas mesmo assim tem que existir uma força e isso daí começou a me ajudar.
Bom, eu conheci uma outra mulher e ela me ajudou a montar, mas ela não acreditou no meu livro, então larguei encostado. Ficou onze anos encostado, e quando eu estava na Detenção conheci o Fernando Bonassi, escritor que se tornou um amigo meu, ele estava dentro de um projeto chamado talentos aprisionados, ele cuidava de uma oficina literária que tinha lá, eu entrei nessa oficina, aí fizemos um concurso literário dentro da cadeia e eu participei, ele leu meu livro e quis publicar, quis ajudar a publicar, então ele digitou o livro e levou para o Dr. Drauzio, que estava lá na época. Então o Dr. Drauzio levou na Companhia das Letras, aí os editores da primeira lida já me chamaram. Chamaram o Bonassi, conversaram e publicaram o livro. Eu achei muito legal porque eu fui entrevistado por quase todos jornais do Rio e de São Paulo. As opiniões da Folha, do Estadão, do Jornal do Brasil, e do Globo são de excelente e ótimo, não falam nem bom, eles acham meu livro excelente e ótimo. Dentro da FUNAP tem pelo menos duas ou três pessoas que defenderam tese em cima do meu livro, o José Antônio, não, o José Antônio não defendeu, mas ele lendo meu livro foi incentivado, o Manuel Português e tem outras pessoas que leram, tem pessoas que defenderam a tese, que trabalharam no serviço social, tem um monte de gente. Eu tenho recebido e-mail de gente que está trabalhando ainda com meu livro, pedindo mais informações para a tese deles. Então o meu nome começou a ser construído, de uma certa forma, através deste livro, depois eu lancei um outro, agora na bienal de São Paulo nós lançamos outro chamado Tesão e Prazer pela Geração Editorial.
Estou com a continuação do primeiro livro que esta lá na companhia das letras, a gente está trabalhando em cima, já foi e voltou três vezes para minhas mãos, com algumas observações, com sugestões, com um monte de coisa para eu trabalhar, reescrevi umas três vezes, fora as vezes que eu revisei, pois a Companhia das Letras é muito exigente, mas agora eu estimo que no fim do ano eles publiquem. Tenho outro também que está na Editora Objetivo e eles estão estudando a publicação, também tenho mais três livros. Tenho a impressão que no ano que vem, eu publicando estes dois livros, entro numa situação de conhecimento, de pessoas me conhecerem e de trabalho escrito, eu entro numa situação ótima. A partir do ano que vem eu começo a deslanchar uma carreira de escritor, tenho uma coluna na Trip que é interessante para caramba. O Paulo Lima, editor da revista, tinha um amigo e uma vez eles estavam viajando de avião, esse amigo dele estava lendo um livro e não parava de ler, o Paulo queria conversar com o cara e não dava porque o cara estava lendo e não parou de ler o livro até terminar. Ele ficou curioso e começou a ler, e também não parou de ler, gostou muito. Então o Paulo mandou o repórter dele conversar comigo. Ele tinha um amigo que mora até hoje em Londres, é cineasta, Rick Goldman o nome dele. O Paulinho imaginou uma coluna chamada “Mundo Livre”, em que uma pessoa falava do Mundo Livre lá de Londres, do meio do mundo lá, e eu falava de dentro de uma prisão, para fazer o contraste. A coluna deu certo, tá dando certo até hoje, três anos, eu já saí e estou contando, mas continua a história porque as minhas impressões aqui eles gostam de ouvir.
As meninas que trabalham na produção da revista, tenho uma amizade legal com elas, falam que a minha coluna é a que recebe mais e-mails na revista. A revista ela atinge um público da classe A, cinqüenta e quatro porcento dos leitores da Trip são da classe A, são pessoas formadas, é um publico mais exigente. Agora estou escrevendo no site também, eles têm um site onde eu tenho uma coluna, então tenho duas colunas. E eu ataco de “frila”, faço uns “frilas”. Recentemente eu publiquei dois textos na Isto É, estou para publicar uma matéria no Estadão. Então eu tenho um monte de coisa assim. Faço palestras, tenho trabalho de palestras com três palestras já montadas, uma é sobre a questão da cultura criminal, que é uma situação que acontece na prisão mais ou menos assim: eles pegam aqui em São Paulo, o outro fez tráfico internacional, prende todo mundo em um lugar só e os abandona. O homem é um ser cultural e onde ele estiver, ele faz cultura, então o que vai se desenvolver ali: um cara que roubou, estuprou, o outro que fez seqüestro, conversam sem que haja a intervenção de ninguém. Que cultura eles vão criar? Uma cultura criminal, em que o crime será o trabalho mental de cada um, o desenvolvimento criminal, aquele que roubava, que era assaltante, pode se tornar um seqüestrador, e o seqüestrador pode se transformar num refinador de cocaína, e progredir dentro do crime, porque é a cultura, e essa cultura, de alguma forma, impregna a alma do cara que convive ali naquela situação anos e anos. E quando ele sai, ele não tem muita condição de se relacionar com uma outra cultura de fora, então ele vai procurar aqueles caras que conversam a mesma cultura que ele, que são egressos, ele não vai ter muita chance de adaptação à cultura aqui de fora, porque ele já esta impregnando.
Por exemplo, ele entra num lugar qualquer, num estabelecimento qualquer, a primeira coisa que ele olha é se tem dinheiro, automaticamente, isso já vem da cultura que ele carrega, tipo: como eu vou fugir se eu roubar isso aqui? Isso é toda uma estrutura que é embutida na cabeça do cara, e aí ele é uma vítima. Ele é uma vítima de uma cultura prisional, olha a história do PCC e do CV, Comando Vermelho, começou na Ilha. A Ilha era uma prisão, e aí puseram os presos políticos junto com os outros, os presos políticos começaram a mostrar que se eles se unissem, podiam controlar a situação dentro da cadeia e acabar com aquilo que acontecia. O que acontecia era preso estuprando preso, preso matando preso, era uma loucura o que acontecia na prisão naquele tempo, então eles passaram a idéia da união para poder se defender, então o preso abandonado começou a se unir, aí se formaram as organizações. Essas organizações provêm de uma cultura criminal, essa cultura criminal sai nas ruas, por isso que o CV hoje em dia já está dominando os morros do Rio de Janeiro e as favelas de São Paulo. A cultura nesses lugares é uma cultura muito frágil, porque o governo também os abandona, como abandona o preso, eles são também abandonados, então a cultura criminal dos caras entra na favela, entra no morro e vem com possibilidade de lucro pela cocaína, pelo tráfico, pelo roubo e tudo mais. Então você vê que os morros no Rio de Janeiro são dominados por organizações, e as favelas de São Paulo são dominadas por facções. E assim essa cultura que foi criada na cadeia ela está na rua. E essa coisa que é a sociedade, e as pessoas aqui fora não percebem, porque eu nunca vi ninguém falar sobre isso, eu só vejo o povo falar que tem que colocar mais polícia na rua, eles acham que a polícia vai resolver o problema e não vai, pode pôr milhões de policiais nas ruas que a polícia vai virar ladrão também.
Tem que agir é na cultura, tem que se trabalhar dentro da idéia e não na conseqüência. A cultura é uma coisa que não acaba, você nasce com ela e vai morrer com ela. Por exemplo, o nordestino vem de lá do nordeste para cá e passa uns vinte, trinta anos aqui, aí nesses anos ele adquire uma cultura paulista, mas se você perguntar para ele o que ele gosta de ouvir, ele vai falar que gosta de ouvir música nordestina, e se perguntar o que ele gosta de comer, ele vai dizer que gosta de comer a comida nordestina, porque a cultura está dentro dele, ela não vai morrer, a única coisa que se pode fazer é substituir, pois nós temos um espaço mental e esse espaço é preenchido por culturas, você pode substituir uma cultura que não é muito boa por uma cultura boa. Então o único meio para combater isso tudo é você mexer na cultura dentro da prisão, levar a cultura da cidade para dentro das prisões. Conheço muitas pessoas que estão aqui também como o Claudionor, que foi uma pessoa que foi educada dentro da cadeia, então se a cultura entrar na prisão, é uma opção, ela não vai mudar o preso, mas vai dar uma opção para o preso e o preso está sem nenhuma opção, está abandonado, então esse é um dos assuntos que eu converso nas palestras, eu também tenho uma base sobre livros que eu pesquiso bastante, desde Papirus até Gutemberg. A primeira Bíblia foi impressa em 1492, então eu trabalho em cima da minha pesquisa, e depois, comecei a trabalhar sobre a questão do livro, o que ele representa para mim. Eu digo sempre que os livros me salvaram, e me salvam a cada minuto até hoje, e em todos minutos difíceis eles sempre me ajudaram.
E outra coisa que eu falo nas minhas palestras é o seguinte: eu aprendi a beber bebendo o resto de bebida do copo do meu pai, eu aprendi a fumar roubando o cigarro do meu pai. Então se o meu pai fosse um leitor, provavelmente eu aprenderia a ler porque ele lia, e hoje, a minha história seria outra, e esse é um exemplo. O Paulo Freire fala, que à medida que você estimula uma pessoa a ler, que você mostra a ela os códigos do mundo, essa pessoa faz uma revisão na sua visão de mundo. É essa cultura que eu falo que tem que ter, o livro tem essa função. Então eu faço uma palestra sobre essa questão, e depois tem uma palestra de motivação, onde eu conto as lutas que eu tive, o que eu fiz para superar as barreiras, as dificuldades e chegar a uma faculdade, e chegar a escrever um livro, para chegar a trabalhos que eu fiz dentro da prisão, dentro do sanatório penal, com aidéticos em estado final na Penitenciária do Estado, muitas situações que eu vivi, conto alguns fatos a fim de trazer as pessoas e motivá-las a lutarem a se esforçarem dentro da vida delas, essas são as três palestras que eu faço.
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A princípio deixar uma mensagem é uma coisa que eu acho que nem me cabe, porque eu acho que, quem sou eu para deixar mensagem? Mas, se eu posso dizer alguma coisa para alguém não seria só para preso, seria para todas as pessoas em geral”.Na prisão tem duas coisas que são fundamentais: uma delas é que tem que sair, pela porta, pelo muro por qualquer lugar, então a pessoa tem que lutar para sair da prisão; a segunda coisa é que é preciso aproveitar o tempo que tem dentro da prisão, olha, o tempo dentro da prisão é o tesouro e não há ouro, nem riqueza tão importantes quanto o tempo. No tempo você constrói ouro, riquezas e tudo mais, mas no ouro e em outras riquezas você não constrói o tempo. O tempo é tudo que nós temos, é no tempo que nós construímos nossa vida.
Então, dentro da prisão aproveitem o tempo ao máximo que puderem, leiam, estudem, se preparem para sair aqui fora, porque aqui fora não é fácil e necessita de uma preparação séria e muito profunda para poder sair fora e ter uma chance. Somente preparado com paciência, calma, e mesmo que dentro da prisão, estudar bastante, fazer todos os cursos possíveis e todas as atividades que possam entrar em contato com as pessoas, para não deteriorar os seus sentimentos, suas emoções, para manter sua razão, seu conhecimento e suas informações atualizados e para acompanhar a vida que não é lá dentro, vida é aqui fora. Então tem que se preparar para sair de lá e o que se pode falar é isso. Lutem, porque aqui fora só vai ficar os que estiverem preparados, até para as pessoas comuns é assim aqui fora, quem não se prepara hoje em dia, está desempregado, são mais de doze milhões de pessoas desempregadas no estado de São Paulo, como é que os caras que não dão trabalho para estas pessoas vão dar trabalho para uma pessoa que está saindo do presídio? Então o presidiário tem que se preparar duas vezes, ele tem que exigir de si muito, e ele que não espere dos outros, ele que espere só de si mesmo, só da sua capacidade, a pessoa humana deve esperar de si, tem que lutar dentro da sua capacidade e criar uma estrutura para poder sair aqui fora e poder se dar bem, ao contrário, a situação é muito difícil, e extremamente complicada.

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